Conselhos a um jovem leitor cristão


Caíram na besteira de me pedir conselhos e dicas de leitura. Besteira maior faço eu agora ao tentar responder.

Querido leitor cristão, sua motivação será sempre a angústia. Para cada livro lido, creia-me, você terá perdido o tempo de outra leitura. Talvez de uma que nunca mais aconteça. Talvez você perca a chance de ler o ‘livro dos seus sonhos’. O tempo corre contra os leitores e o ‘tempo sempre vence’. Mas já que você quer ser um cristão que lê, vamos lá.

Em primeiro lugar, sugiro que aprenda a ler, ou seja, vá além da decodificação e da aceitação do conteúdo lido. Reflita, argumente, se indisponha com o texto, duvide do que está escrito, chame o autor pra briga. Afinal se você quer ser um leitor, respeite o escritor e trate-o como um adversário à altura ou como um companheiro de vida, nunca como um colega obrigatório de viagem de ônibus, ou de fila de hospital. Muito menos o subestime. Se ele não merece a companhia ou a briga, abandone-o logo. Um livro medíocre merece apenas um leitor medíocre.

Em seguida, rompa as barreiras de papel crepom. Explico: leia de tudo. Sem preconceito. Especialmente, leia fora do ’selo gospel’. Não caia na esparrela de que não há nada de bom fora da igreja. Não aceite para a leitura a distinção equivocada que ronda a música para os cristãos, isto é, não separe sagrado de profano de mundano.

Entendidas essas coisas, fica aqui minha lista em completa incompletude.

Leia Conan Doyle e depois enfrente o Muro de Sartre, exponha-se à crueza de Camus e sorva a insustentável leveza de Kundera, enfrente O homem marcado de Sabino e passei pelos Contos da montanha de Torga, experimente Cem anos de solidão de Garcia Marquez e declame os sonetos de uma vida inteira de Neruda. Leia Agostinho e Simão de Rojas. Leia roteiros e peças de teatro. Vá de O invasor de Marçal de Aquino ao Otelo de Shakespeare. Leia O rei da vela de Nelson Rodrigues e em seguida Seis personagens em busca de um autor de Pirandello.

Já que os livros que você lerá pedem sem o menor pudor o abandono de tantas outras obras, deixo também a minha lista do que não ler.

Nunca leia manuais, só os de produtos eletrônicos ou de remédios para o baixo ventre. Mas afaste-se de livros que tenham numerais no título. Não perca tempo com ‘10 passos’ ou ‘21 regras’ para isso e para aquilo outro. Fuja das ‘maneiras práticas’ e denuncie qualquer título que tenha substantivos ou adjetivos relativos a ‘vitória, prosperidade e conquista. Enfim, fuja da literatura pragmática.

Todavia, não se contente com os meus conselhos, vá além. Vá a sebos e converse com os donos [eles têm preciosidades].

Gaste tempo em feiras, procure pelos livros escondidos nas prateleiras baixas. Peça sem cerimônia para ver a biblioteca de amigos e inimigos.

Nas viagens, leve consigo grana suficiente para comprar livros. Quem se importa de ficar sem almoço tendo adquirido um raro exemplar cheirando a baunilha?

Não tenha preconceitos. Se, ao ler, não gostar, pronto. Tudo bem. Mas leia. Leia de direita e de esquerda, cristãos, ateus, agnósticos e porra-loucas. O inferno seria não ler. A ignorância nem sempre é benção.

Por fim, conselhos pragmáticos [para que você possa me chamar de incoerente]: leia Manuel de Barros no parque e Ítalo Calvino [não o pai do calvinismo] ouvindo La Traviata. E, agora mesmo se possível, leia: Tabacaria, O menino da sua mãe, Ao volante do Chevrolet, Poema em linha reta, Ah um soneto, Adiamento e Cruzou por mim [todos do genial Fernando Pessoa].

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