A horripilante donzela

por Zé Luís

Conta a lenda do Graal que Parsifal, idiota que se torna honrado cavaleiro, está no meio de uma celebração ao seu nome, no pomposo Castelo do Rei Arthur, quando uma horrenda donzela, de cabelos negros, divididos por tranças, surge em uma mula manca, acusando o homenageado por suas faltas e culpas.

Pedro, virado para parede, debaixo do chuveiro, chora ao lembrar mais uma vez, com arrependimento, a dor causada a alguém, há mais de duas décadas. A memória vinha bem no meio de seu júbilo pessoal, cortando aquele momento de glória: ainda celebrava uma vitória, desfrutando a sensação prazerosa de serventia e poder. A ideia de que era bom no que fazia.

A lembrança vinha como a bruxa feia que surge no meio da homenagem ao condecorado Parsifal, acusando e denunciando cada momento de sua imbecilidade, enumerando suas falhas e idiotices, maldades e desmazelos.

Mas o que a bruxa vinha fazer no meio de um rotineiro banho, montada em sua mula manca das quatro patas? Com sua gargalhada guinchada e voz de vilã da Disney, vociferava:

“Lembra quando usou teu dom contra teu inimigo? Vocês eram meninos, colegas de uma turma linda. Lembra? O Fábio? Você não gostava dele por que ele traia sua amiga ou tinha mais vantagens com as meninas do que você... Ficou todo feliz quando ele envolveu-se em um assalto, foi preso, e foi lá, dar seu recadinho...
Falou apenas quinze minutos, e saiu, como tivesse lavado a própria alma... como foi cruel dizendo aquelas palavras tão duras bem no momento mais frágil e difícil daquele adolescente... “

A alegria, novamente, transformara-se em vergonha, e as lágrimas desciam com as águas quentes do chuveiro. Era um segredo que revelava sua natureza mais perversa. Apesar de passados mais de vinte anos, ele conseguia recordar cada cena daquela situação, o olhar perdido do moço, a arrogância de sua voz enquanto mostrava ao réu o quanto era vil e indesejável. Lembrava de sua camisa vermelha suada, mas não se deu ao luxo de perceber que os olhos do ladrão marejavam em desespero.

Não lembra de suas palavras, mas recorda dos olhares de seus amigos e amigas – daquela mesma turma, quando contaram que Fábio tentara o suicídio após a conversa que tivera com ele. O medo e a desconfiança que seus amigos (a quem ele amava tanto) passaram a ter dele o afastaram, o que machucava-o, mas arrogante, Pedro não se importou, e passou a andar só desde então, quando seu orgulho continuava afirmando que suas palavras verdadeiras tinham que ser ditas, e “quem fosse podre, que se quebrasse”.

Perdeu o contato com os eternos amigos. De alguns não lembra mais o nome, mas Fábio ainda o atormenta nas insônias da madrugada.

Não: ele não morreu. Encontraram-no a tempo para uma lavagem estomacal, e puderam retirar as dezenas de comprimido que tomou. Os dois se encontraram uma vez, anos depois, numa empresa onde o moço – já homem – trabalhava. Pedro foi entregar currículo e foi justamente Fábio quem o recebeu, embora nem um ou outro soubessem que esse encontro aconteceria, já que o mesmo fora combinado por telefone e não reconheceram a voz. Pedro e nunca foi chamado para o trabalho, e a partir de então, nunca mais viu Fábio.

O que ficou para ele foi o profundo desejo de pedir desculpas sempre que se lembra do mal que fez, e de como a bíblia nos alerta sobre o poder da língua, e de como a palavra errada pode destruir.

A velha parecia satisfeita com as lágrimas mas, antes de bater em retirada, olha para trás, e com um ar estranhamente angelical, traz a memória outra coisa:

“Abençoado é por isso, quando hoje escolhe o silêncio ao invés do revide, abdicando de se defender contra a calúnia e a agressão, não por estar acima destas provocações. Abençoado és por aceitar a humilhação, quando poderia com tua boca destruir a vida de quem te atormenta, mesmo que justificável. Fábio ensinou o quanto pode ser maléfico teu dom, e de que não foi para isso que este foi-lhe entregue...”

Necessário é saber os limites e as consequências.

Aquela velha horrenda, agora parecia-lhe agradável, como os remédios amargos que revelam seu efeito benéfico no alívio. Pedro reconheceu em seu olhar um tom familiar de quem sabe apascentar seus amados, embora a face de acusador poderia ser confundida com o atormentados das almas.

Reconheceu, como os discípulos a caminho de Emaús, que ali não era um simples acusações e tormentos de um tempo que não tem correção: era mais um passo para a cura que só a Cura sabe trazer.

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