Incidente em Betesda

por Zé Luís

Era só mais um dia diante da teimosa esperança de ver-se livre da sua miséria.

Ao seu lado, mais miseráveis e desvalidos, uns mais desgraçados, outros menos, em volta da promessa mágica de uma cura instantânea, a combinação entre uma coisa usual, ordinária, águas em um tanque, sejam tocadas por algo extraordinária, o simples toque de uma criatura qualquer do mundo perfeito, do Reino onde não perambulam seres caídos nas ruas, como o que acontece por aqui.

Acreditava-se que o simples toque nas águas dessas criaturas, fosse poço, tanque ou rio, seria suficiente para deixá-las - momentaneamente - com propriedades curativas.

Era isso que os desvalidos esperavam. Era isso que aquele paralítico – com quase quatro décadas de doença - observava: o sinal das águas que se movimentariam com o farfalhar das asas de um anjo, para entrar na corrida e alcançar a cura derradeira, só possível ao primeiro que chegasse.

Um dia qualquer, tanto faz para nós ocidentais, se era domingo ou quinta-feira. Para ele, judeu, era sábado, dia sagrado, mais um dia para se aguardar o (im?)possível anjo. Se ele tem fé? Ele não tem mais nenhum lugar para depositar a única coisa que o mantém vivo: esperança, e então fica ali, aguardando, aguardando...

Um desconhecido observava sua figura deitada. Alguém de fora da cidade, possivelmente em visita a Jerusalém.
- Quer ficar são? - perguntou o homem.

Por que aquela voz parecia tão familiar ninguém consegue explicar. Um timbre de antes de se ter nascido, embora sua enfermidade fosse mais velha que aquele moço, que beirava os trinta anos. Uma ideia que só faz sentido após a morte. O paralítico explica :
- O senhor deve saber: na corrida para chegar ao tanque tocado por um anjo, nunca chego a tempo de ser o primeiro, não tenho quem me leve... - quem sabe ele se prontifica a me carregar, deve ter pensado.

Ter um home care não é fácil (nem tão pouco barato). Um amigo disponível 24 horas por dia não é tarefa simples quando a única coisa que de tem são as misérias pessoais, e cada miserável tem suas pequenas necessidades: não dava para abrir mão de um milagre como se abre de uma única refeição diária. Há companheirismo na miséria? Claro. Mas nem todos tem o ideal de permanecer em seu estado caótico quando existe a chance de sair disso para sempre.

- Levanta. Pega esse lugar onde você está deitado, anda.

Por que não pensaram nisso antes? Simples: Pense no esvaziamento de hospitais apenas com esse comando. Talvez você, leitor cético, riria de tamanha audácia, mas o impensável acontece.

Quem dá a ordem não é um louco, é alguém conhecido por seus discursos lúcidos, embora aquele homem não soubesse de quem se tratava. E então,,,

Inexplicável: ele levanta e anda, obedece involuntariamente ao comando. Procurem médicos e cientistas para explicar como em um segundo, não existe coluna que sustente aquelas pernas, e no outro, ele parece nunca ter experimentado a doença em toda a vida.

Assim eram com os que cruzavam o caminho daquele estranho homem de voz familiar. Em um momento não haviam mais demônios que atormentassem, lepras que assolassem, cegueiras que ficassem sem luz. Morto antes, vivo agora, impérios malignos arquitetados e edificados por décadas se derretiam com a eminência da luz de sua presença.

O tal paralítico estava pronto para o milagre: ele levanta e anda. Esquece do tanque, não tem mais sentido pajear aquele depósito de água, a competição pelo milagre não tem mais razão de ser perseguida.

Quantas vezes olhamos nossos objetivos como a única solução possível?(no caso impossível: se houvesse um anjo que tocasse aquelas águas, e se por acaso isso viesse a torná-las curativas, concorreria com outros desvalidos, e sendo aleijado, jamais seria o primeiro a chegar). Nem só de pão viverá o homem. Da Palavra que vem da boca de Deus vem a solução.

Sim. Por algum motivo absurdo e maravilhoso, haverá um momento em nossa desvalida espera que será preenchida com outra coisa que não seja fruto de nossos esforços, não virá como resultado de nossos planos e projetos. Será Graça, favor imerecido.

Um dia, uma voz muito familiar perguntará o que quer, e então, você distraidamente responderá o óbvio. É assim que acontece, instantaneamente, a ponto de pensarmos que todo o passado foi apenas um pesadelo que nunca aconteceu.

Por isso, levar nossa velha liteira conosco é preciso, nossa cruz, a lembrança de nossa velha desgraça debaixo do braço. Ter as fotos de como éramos antes Dele nos alcançar em sua Graça. Apesar de ser absurda e inaceitávelmente ingrato, não é difícil encontrar aqueles que foram transformados em gente pensando que são assim por suas próprias forças, ou por algum mérito que nem mesmo ele é capaz de explicar.

A aparência da conversão legítima tem esse detalhe nos seres restaurados: a ingratidão é comum, e muitos ficam abraçados a esse presente e sem perceber, ignorando todos os outros reservados na eternidade.

Uma pena.

Comentários

  1. Uau...
    Que texto.
    Alimentou a minha alma. Meu coracao se encheu de alegria.
    Deus te abençoe.

    Henrique

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  2. Zé,

    Maravilhoso texto, e reflexão. Como disse o Henrique, meu coração se encheu de alegria, e esperança, e parece que um fardo, de preocupação em querer fazer as coisas por minhas próprias forças, caíram.
    Deus lhe abençoe.

    Leonan

    ResponderExcluir

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