As lágrimas que você não enxerga

por Zé Luís

Detesto ouvir minha voz em gravações. Capricho tanto ao cantar, por exemplo, e quando ouço a gravação, descubro algo desanimador, anasalado, quase fanho (quase é um pouco de misericórdia comigo, sem falar do desafino).

Qualquer fonoaudióloga explica isso: o som que ouvimos de nossa boca é diferente já vibra dentro do nosso próprio crânio, diferente do que os outros realmente escutam. É como se falássemos com um balde na cabeça, só que o balde é a própria cabeça.

Quem acompanha esse blog, sabe minha profunda admiração pelos escritos de C.S.Lewis. O livro “Problema do sofrimento”, por exemplo, fala sobre a velha máxima filosófica:

“Se Deus é bom e tudo pode, e o mal acontece: ou Ele não pode tudo – já que as coisas ruins acontecem e não consegue evitar, ou Ele é mal, já que coisas ruins ocorrem com seu consentimento onipotente...”

O livro é realmente excelente, mas um outro, “Anatomia de uma dor”, do mesmo autor, expõe uma forma bem mais crua o assunto: ele, que nesse meio tempo se apaixona, casa, e perde o grande amor para o câncer, narra agora das entranhas do “problema do sofrimento”.

Ele se mostra irado com o Todo-poderoso, e percebe o quanto sua grande e conhecida teolgogia e argumentação são nada diante da dor da perda de um amor.

Ele descreve o luto, como quem saboreia cada pequena colherada de um denso pudim amargo. Eis a descrição de sua experiência, da pena do próprio autor:
“Deus certamente não estava fazendo uma experiência com minha fé nem com meu amor para provar sua qualidade. Ele já os conhecia muito bem. Eu é que não. Nesse julgamento, ele nos faz ocupar o banco dos réus, o banco das testemunhas e o assento do juiz de uma só vez. Ele sempre soube que meu templo era um castelo de cartas. A única forma de fazer-me compreender o fato foi colocá-lo abaixo.”
Ele descobre que uma coisa é falar sobre a dor alheia observada. Outra é descrever algo enquanto ele te arranha e belisca por dentro.

Recentemente, acompanho minha pequena cadela vira-lata definhar sem que algum veterinário possa ajudar: ela tem treze anos, já passou por muitas nessa curta vida (curta para mim: para um cão, é uma enormidade). Agora, minha família presencia seus últimos momentos em nosso convívio. Ela, uma pequena e magricela sem-raça, já não consegue acompanhar meus passos, mesmo lentos, nos passeios que damos quando vamos à rua.

A Neguinha cresceu com meu caçula, são da mesma idade. Meus três filhos, na época garotos, jogavam bola na rua, fazendo do portão de casa o gol, e a pequena cachorrinha ficava lá, pajeando os garotos, rosnando quando algum estranho tentava contato.

Ela já não late há anos, o que ajudou no convívio quando mudamos para o apartamento, mas agora também não come e, lentamente nos acompanha, de um cômodo para o outro, sempre sentando do nosso lado, como nos guardasse de um possível mal, e esperando um afago no pelo.

Eu sei, meu caro leitor: existem perdas maiores, pessoas mais importantes a lastimar, dores mais intensas e lágrimas mais amargas a serem derramadas. Mas essas dores só são possíveis aos que amam, já que amar tem disso: sofrer por não poder mais desfrutar do convívio daquilo que gostamos demais. Espero que compreenda que o som de dentro da nossa cabeça é totalmente diferente daquele que vocês ouvem. Como escreveu Caetano Veloso: "Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é..."

Se sofro por uma pequena - e eminente -  perda dessas, o que dizer dos que perdem filhos? Pais? Amores?

Mesmo assim, invejar os mortos, pela incapacidade de amar, é algo fora de cogitação.

Então, continuemos amando e que venham as lágrimas, amargas talvez, até que um dia elas não tenham mais razão de ser. O dia em que nada do que amamos poderá mais ser tirado.

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