Hora de enfrentar o Rei

por Zé Luís  

 Para ele, a vida não poderia estar pior.

Sabia de seu destino desde criança: não só por tradição, mas por medida de segurança, todo rei de outra linhagem que assume um trono, procura qualquer descendente do que foi deposto para matá-lo. Que poderoso gostaria de dormir sabendo que alguém, em algum lugar, poderia querer vingar o parente deposto, assassinando-o, exigindo para si mesmo a coroa? Quem sabe liderar uma rebelião para reclamar o trono, dele por direito?

Um dia seria entregue ao rei. E ele era consciente: seria seu fim. Dormia e acordava todos os dias de sua vida na expectativa que o encontrassem.

Era ele de linhagem nobre? Sim, neto de rei, filho de príncipe, embora vivesse como mendigo, de favor na casa de um certo Maquir. Ficara aleijado das pernas quando era de colo, durante a fuga, quando invasores inimigos estrangeiros chegaram e a matança de seus parentes aconteceu: a babá deixou-o cair e nunca o tratou. Sua higiene, alimentação, locomoção, em tudo dependia da boa vontade de quem o suportava, em meio a poeira e gritaria dos frequentadores do mercado central, onde conseguia esmolas que um ou outro davam.

Naquela manhã ainda não havia comido, ninguém se aventurou a dar-lhe ao menos um pão seco ou alguma tâmara que não fosse fazer falta na mesa daqueles que ali gastavam. Quando os oficiais apareceram e se aproximaram, pensou que lhe dariam alguma moeda, mas perguntaram pelo nome e filiação, e então, o aleijado já sabia. Não demoraram a perceber que ele era aleijado das pernas, os ossos calcificaram tortos por falta de tratamento e agora, quando tentava andar, numa subida e descida frenética de corpo, as mãos precisam auxiliá-lo.

Agora, Estava a caminho de sua condenação, finalmente. E com fome.

– Quem sabe o rei, ao me ver, percebe que não represento perigo algum? – pensou ele, enquanto era escoltado ao palácio. Buscava em sua memória algum traço de esperança, mas não conseguia lembrar nada que pudesse dar forças para isso. Apesar de sua vida miserável, alimentando-se das migalhas e sobras, morrer não lhe parecia uma opção desejável. Pelo menos, o medo desse esperado encontro não precisaria mais o acompanhar para sempre.

Se ele merecia ser morto? Além dos pequenos furtos feitos nas bancas e armazéns por onde perambulava? Ele era do sangue daquele que representava risco ao atual comando do reino. Ele era a possibilidade de rebelião e isso, se levado adiante, gera guerra, e perdas de vida, dor, choro.

Chegou ao palácio, e com estranha gentileza por parte dos oficiais, foi carregado pelas escadarias a sala onde o rei despachava.

– Vergonha Despedaçada! – disse o rei, sorrindo ao vê-lo.

Seu nome é esse. Traduzi para que você entendesse melhor o que era sua vida. Algumas pessoas possuem belos nomes. Nomes de reis ou de grandes personalidades. Ele não: A tradução - do hebraico – de seu nome era essa: Vergonha Despedaçada, ou Mefibosete.

Ele recuou. O que está acontecendo? – pensou. Por que o rei parece estar feliz em me ver?

– Não tenha medo, Mefibosete – disse o rei – Serei bom com você. Meu tratado foi com seu pai, e a este acordo sou fiel. Um pacto que supera, e muito, os pactos de sangue. A você entrego os bens que pertenciam a seu avô: terras, propriedades.
– Quem sou eu, esse cão vagabundo, para que o rei se agrade da minha vida? Olhe! Um aleijado….
– Em você vai algo que homem nenhum pode oferecer: a realização de uma promessa ao seu sangue, seu pai Jônatas, meu amigo. Eu o vejo quando olho para você….

Mefibosete não entendia tanta generosidade, não conheceu esse tipo de presente exagerado por saber que não tinha nada para oferecer em troca. Tudo aquilo tinha que ter um preço.

– Tem algo que exijo que você faça. - disse o rei.

Mefibosete sentiu a alma congelar: o que o rei exigiria por tamanha oferta? Lá vem, finalmente. a conta de tamanha paga. O rei responde:
– Quero que comas a minha mesa. – disse o Rei Davi – Comerás entre meus filhos, e tudo que estiver na minha mesa, é seu também.


O dia começou como um dia qualquer, regado do medo cotidiano de que um dia seria pego e pagar o preço por ter o sangue que lhe daria a pena capital. Acabou o dia abandonando as vestes de indigente, jantando a mesa com o homem mais poderoso do país e dormindo na mansão que um dia julgou ser um sonho que nunca mais voltaria.

Um dia estamos nos revirando nas porcarias que vida nos ofereceu, com o medo disfarçado de quem sabe que não faz o que deveria. Sabemos que adiamos o inevitável, tentando imaginar como faremos quando o dia de pagarmos a dívida chegar.

Mefibosete agora mancava entre príncipes e princesas, e em seu prato havia o mesmo que o supremo governador de um país tinha.

Para ele foi mais fácil: não tinha como fugir, não tinha como pagar, não tinha como devolver. Da parte dele não havia nada o que fazer e por isso, esperar calado seu decreto diante de um rei - que diziam ser justo – é o que lhe cabia.

O apóstolo Paulo conta que Deus é por nós. Sabemos o que merecemos quando tomamos consciência de nossas misérias pessoais, de como mancamos entre mentiras e mesquinharias, na calcificação torta de ideias torpes e egocêntricas. Só então, saberemos o que fazer quando chegar o dia repentino e formos diante daquele que pode julgar, condenar e aniquilar:

Calar e esperar o veredito.

Não há reivindicação, nem direitos: e o que fiz de bom? Era minha obrigação desde que estou inserido numa sociedade que se denomina “humana”.

Pela Graça, quem sabe, Ele possa olhar-nos e, em vez de ver o miserável indigente cheio de mesquinhas necessidades, enxergue aquele que morreu por você e diga: “Não vejo um cão vagabundo que quer destruir meu Reino com traições: vejo nos seus olhos alguém muito amado, no qual selei meu pacto com sangue numa cruz”.

A pequena trágica parábola viva de Mefibosete nos conta que o rei não tem apenas a intenção de nos absolver, de nos deixar vivos:

Devolver aquilo que um dia nos fez humanos e dignos, e exige que nos deleitemos em sua mesa, junto aos príncipes e princesas de seu Reino.

Difícil entender as ideias desse Rei mas nada disso é novidade. Embora essa Graça não seja tão simples de ser aceita por pessoas que ainda não reconheceram o Mefibosete que nelas habita.

Baseado na Bíblia, 2 Samuel 9.


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