Hélio: Assim chamaremos meu ex-aluno de escola bíblica dominical.
Tive raiva de Hélio durante certo tempo. Não por ter sido um
adolescente difícil. Não é isso.
Criado sozinho pela mãe evangélica do círculo de oração, era
silencioso e observador. Sempre pareceu incomodado quando se descontrolava e
desatava a gargalhar por causa das imbecilidades que eu usava durante as aulas,
para ilustrar essa ou aquela passagem bíblica, ou situações absurdas de nosso convívio
de crente.
Ajudei a alfabetiza-lo quando já passava dos quatorze, e ele
nunca faltava na escolinha da igreja dominical, assim como sempre ia em casa
falar sobre dos livros que começou a ler freneticamente. Amou C.S. Lewis logo
após a aula onde eu explanei sobre quem era Aslam e que mundo era aquele leão
havia criado – muito antes da Disney imaginar em produzir a série.
Ele cresceu – muito -
e chegou o tempo onde ele deveria escolher com quem queria se socializar,
e como ali na comunidade local não havia tantas opções, o caminho da droga para
quem não tem escolaridade acabou oferecendo mais atrativos e engolindo-o como a
única opção financeira válida (para ele). Se afastou do grupo. A mãe dele
sempre pediu ajuda em oração pelo filho – que levava essa vida às escondidas - que
prometia dar a ela “através do seu trabalho” todo o conforto que o pai deixou
de dar.
Não demorou e ele começou a usar o produto que deveria
vender, e então a dívida com o tráfico fez ele ser marcado para morrer. Não
tinha nem vinte anos quando a mãe entrou na boca de fumo e negociou a vida do
filho - que já estava amarrado
literalmente - com o gerente da “biqueira”. A crente conseguiu. Não sei bem o
que ela precisou vender em casa para pagar, já que a casa de tres comodos onde vivia com mais uma filha não tinha muito a oferecer.
Hélio foi para casa, voltou a frequentar a igreja, arrumou
uma namoradinha, e começou a tocar bateria em alguns cultos.
Um dia descobri que ele, que havia se tornado uma
celebridade por seu testemunho, colocava em dúvida minha vida intima e moral, e
que meus alunos – entre eles, meus filhos – começavam a me olhar de forma
diferente. Eu era realmente honesto em minha relação com minha esposa?
O menino que deu testemunho de livramento da morte na
igreja, criado junto com meus garotos, agora colocava minha vida numa fofoca
que poderia atingir meu casamento.
Nunca tive vontade ou disposição de ir tirar satisfação
sobre o assunto. A tristeza e a decepção foram maiores, a ponto de roubar de
mim a vontade de continuar falando sobre as coisas do Reino para adolescentes e
jovens. Ele era uma das crianças que eu mais amei ensinar. Aquela era minha
paga.
Aproveitei que meu trabalho oferecia essa opção e mantive
então certa distância de todos.
Nunca deixei de ouvir histórias sobre ele, mesmo quando tornou
a se afastar novamente do convívio dos “irmãos”. Um dos meus filhos o amava, e
sempre tentava manter contato, apesar do reingresso na vida do crime, das
surras que dava na namorada para conseguir mais dinheiro para comprar droga,
das coisas que furtava da casa da mãe para o mesmo fim, e por fim, da prisão em
flagrante por venda de droga, agora com quase trinta anos.
Pensei na ineficácia do que preguei e de como tentei mostrar
a Graça contida nas Escrituras, das orações da mãe que nunca cessaram, do amor
dos amigos que sempre tentaram manter – na medida do possível - proximidade (entenda
que na vida do crime andar na linha é muito mais necessário do que fora: ofender
a mãe não é como chatear o gerente do tráfico, e habitualmente, quando o
castigo chega para o ofensor, habitualmente quem está junto tem que ser
eliminado, para não haver testemunhas).
Hoje, a mãe sempre chega atrasada nos cultos de domingo:
nunca deixa de visitar o filho na cadeia, e o que ele só pede uma coisa:
livros.
Hélio, meu ex-aluno, criado com meus filhos, é oficialmente bandido.
Recentemente, ouvi algo da mãe dele em uma conversa entre
irmãos: os outros bandidos souberam que ele sabia ler, que conhecia livros, e
que sabia – além de ler! - Interpretar trechos confusos da bíblia. Isso fazia
com que vários encarcerados o procurassem - com a bíblia na mão - para falar
sobre o que Jesus queria dizer realmente naqueles trechos. É bom lembrar que
muitos dos detentos são filhos de evangélicos.
Ele ensina o que aprendeu nas aulas de uma sala abafada, sem
janelas, de seis metros quadrados, quando não tinha nem quinze anos. Explana
para sujeitos que mataram, traficaram, roubaram, e que muitos queriam que
estivessem mortos. São descartáveis e possivelmente serão enterrados em alguma
vala comum mais dia, menos dia
Aquele menino que virou bandido, traficante, passa o tempo
de prisão falando sobre o que aprendeu sobre a caminhada de Jesus na Terra para
gente condenada como ele. Além disso, a mãe de Hélio ainda conversa com os “meninos”
presos, já que a imensa maioria foi abandonada pela família, conforme avisado
que fariam quando ingressaram no crime. Passam seus meses apenas na companhia dos
outros detentos.
Ouvi isso e após meses, sem o mínimo de vontade de escrever,
voltei até aqui nesse espasmo: a comunidade cristã brasileira vem se tornando
cada vez mais escrota, e irreconhecível, se comparada ao que me evangelizou a
mais de duas décadas passadas. A internet deu voz a todo tipo de gente que se
acha mestre, que se sente especialista do assunto que pesquisou por nem trinta
minutos, e segue agredindo, xingando, aplaudindo imbecis, no que a manada grita
na moda.
Esse era um motivo.
Mas além disso, tinha esse ex-aluno que denunciava em sua
história a certeza da minha grande inutilidade em querer falar sobre
assuntos "espirituais" que pareciam não surtir efeito realmente eficaz em uma alma.
Agora, a culpa parece vir me rondar: parar de ensinar não
poderia ter sido uma opção, já que eu não sabia para quando – e se - aquilo
poderia ser usado. Eu não sei o tempo das coisas que Ele programa usar ou mesmo se aquilo será usado da forma que apresentado. Claro que ninguém consegue sondar Seus caminhos. Eu deveria apenas fazer o que minha alma me mandava
fazer.
Meu consolo é saber que o Senhor também conhece a
fragilidade de meu coração, e que jamais esconderia Dele – mesmo que fosse possível
– a dor que me tomou por tanto tempo. Compreendo a necessidade de perdoar cada
dia mais.
Feliz por Helio estar levando Cristo para bandidos na cadeia. Em breve, quem sabe, teremos irmãos detentos povoando o céu do lado de gente que os odeia.
Ironias.
Obrigado pelo texto. Tenho "Hélios" na minha vida também.
ResponderExcluirNão entendemos muitas coisas nessa vida, mas nunca devemos esquecer que Deus está no controle de tudo. Feliz por ter conseguido forças pra escrever novamente, com certeza sua é benção, e não é fácil hoje em dia encontrar na internet pessoas que falem sobrem jesus que apresentem bom conteúdo. Obrigada, que Deus te abençoe.
ResponderExcluirObrigado pela reflexão.
ResponderExcluirhttp://pastorcleber.blogspot.com.br/