A presença de Deus na obra de Saramago?

por Zé Luís

Ato falho é aquela situação onde revelamos, de forma espontânea, o mais sigilosos segredos. Conta-se que isso é um ato do inconsciente. Um exemplo clássico é a do sujeito que troca o nome, e acaba chamando a esposa pelo nome da amante.

Quando li o angustiante “Ensaio sobre a cegueira” de Saramago, ateu ferrenho, notei algo em um de seus personagens: a mulher do médico é a única capaz de ver quando a epidemia de cegueira branca domina todo o país(se você não o leu, e pretende, talvez haja aqui alguns spoilers que atrapalhem quando fizer isso. Por exemplo, no livro inteiro, não existe o nome dos personagens, e sim, sua posição social, ou, o que representam na ordem em que se apresentam na história).

Ela escolhe estar com o médico, seu marido, quando ele é recolhido pelo governo para o isolamento, se fazendo de cega. Eles, e mais um grupo, se apinham em uma ala de hospital, abandonados pelo governo, que tenta esconder o problema.

A epidemia não se restringe à classe A, B, ou C. Repórteres estão no meio do noticiário quando ficam cegos, e agora, no “campos de concentração”, se amontoam cegos, montando facções rivais, a ponto de uma ala tentar dominar a outra, com direito a violência sexual e assassinato.

Enquanto os cegos se multiplicam, os hábitos higiênicos destes inexperientes desprovidos de visão são abandonados gradativamente defecam pelo caminho, sem se limpar, comem como animais, fazem relações sexuais no meio dos outros, cagados, e já não se vestem de forma adequada.

Nem imaginam que ali, existe alguém que se obriga a ver tudo, em silêncio, guardando para si toda a tragédia e humilhação que se espalha por sua sadia retina. Até o marido(só ele então sabe de sua visão), por quem se sacrificou, a trai com uma prostituta, mantendo relações sexuais diante dela, ignorando sua presença e ciência.

Eles estão agora submersos num mundo onde são imundos, precários, mesquinhos, e a mulher, que ajuda o grupo com seu dom, vê tudo aquilo e se reserva a sofrer silenciosamente.

O que não é Deus muitas vezes que não isso? A presença que se obriga a ver a miséria de quem perdeu a visão, que mais parece uma epidemia fictícia, e a perda o faz, aos poucos, se entregar a imundícia.

A mulher, por amor, permanece no auxílio e cuidado, mesmo quando ele o traí com a garota de programa. lembrando nossa condição de saber que Ele está aqui – e não LÁ – mas nos fazemos de desentendidos, fingindo que não existe, ou que faltou bem nesse dia.

Um dos cegos entra em pânico quando descobre que existe entre eles alguém que enxerga, e sua reação é tentar destruir aquela presença. Destruir a presença daquele que vê tudo, e portanto, sabe de nossa vergonha.

Saramago era ateu, mas toda a onisciência de seu personagem em relação a miséria humana, e sua insistente crença neles, só conseguem me lembrar de um Deus que ele não cria, mas em um ato falho, acabou por inserir como personagem principal de sua tragédia épica.

Um personagem que se obriga a sofrer tudo por amor de seu esposo, e depois, incorpora novos cegos em seu sacrifício, se fazendo líder e servo, pondo sua vida em risco em prol daqueles outros personagens tão mesquinhos, e que realmente, não valem a pena. Como eu, e você

Comentários

  1. sua analogia foi perfeita, de alguma forma muita vezes cegamos...quanto à obra, pena q no filme perdeu dua força e profundeza.

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  2. Olá Zé!

    Não li o livro, mas assisti ao filme e fui impactado. O ser humano não tem jeito mesmo. Quando não consegue encontrar Deus na realidade (por pura cegueira), tenta inseri-lo em suas fantasias. O fato é que não dá pra viver sem Ele.
    Anos atrás, assisti a uma entrevista do Jô Soares com o célebre antropólogo ateu Darcy Ribeiro. À época, Darcy estava com os dias contados devido a uma doença que avançava pelo seu corpo. Num dado momento, ele confessou que tinha inveja dos crentes, por achar que eles morriam com mais dignidade, por crerem em Deus e numa vida pós-túmulo. Vi nele um ateu honesto, que embora não conseguisse, gostaria muito de poder crer.
    Talvez Saramago fosse mais um ateu que, no fundo no fundo, desconfia que Deus exista.
    Parabéns pelo seu texto. Se não se incomoda, vou publicá-lo no meu blog durante a semana.
    Abraço.

    www.hermesfernandes.com

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  3. Quem garante que ele não cria mesmo nesse Deus?

    Ele pode ter feito todo aquele bafafá só por marketing... Pra poder vender mais livros e evangelizar mais!

    Kkkkkkkkkkk...

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  4. Eu só consegui entender que você, ao comparar deus à mulher, nos diz que ele tudo vê, mas nada faz e aceita... por amor (hein?)

    por essa analogia, a mulher pode não fazer nada pq não tem condições de fazê-lo, mas deus teria sim condições de mudar tudo, não é?

    acho que comparar a trajetória da personagem a um suposto comportamento divino só faz desmerecer o poder de um deus onipotente, não?

    abraços!

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  5. Olá, anônimo. Bem vindo.

    Que bom que conseguiu entender algo, normalmente se queixam da minha constante confusão mental.

    No livro, fica bem claro que ninguém é digno de receber ajuda, a dimensão da tragédia epidêmica não faz de ninguém um milimetro melhor. Na verdade, aos poucos, todos mostram seu pior, o que justificaria o desmerecimento do auxilio da mulher. Fosse por merecimento, não devia ajudar ninguém, mesmo se fosse onipotente. Certo?

    Na história, ela ajuda sim, mas oculta seu dom conservado: ela e o marido sabiam que viraria uma escrava daqueles que ali se arrastavam entre as fezes (muitos dos que são convictos nesta presença onisciente não demoram a tentar colocá-Lo em cabresto, dando ordens aos céus para que as coisas aconteçam).

    Usando um personagem bíblico – também citado pelo escritor :

    Deus sabe que Cain matará, e nada faz. Estava na mão de Cain matar ou não.

    Seria muito interessante se, a cada erro grave, a cada estupro cometido, a cada assassinato infantil, o criminoso fosse fulminado instantaneamente. Mas... e se o estuprador fosse fruto de pais doentios? Que fossem fulminados os pais também... Mas os pais produziram um monstro por que receberam de sua sociedade absurda uma formação moral caquética e obtusa... Que se fulmine a vila, o estado, o país, o mundo...

    Na verdade, todo ele é fulminado, gradativamente, aos poucos, e por nós mesmos. Perecemos em nossa maldade, como na epidemia de cegos do conto de Saramago.

    Discordo de você: a falta de ação da mulher é mais que justificada, embora a ação Divina, que age entre uma cegueira humana e outra, não devesse ser. Nós não merecemos, Ele sabe e nós também.

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  6. Texto "2 Bs"! Belo e Brilhante!

    Me comoveu realmente! Parabéns mesmo!

    nEle

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  7. Ótimo texto.Ouvi uma professora dizer que achou muito curioso que Saramago criasse dentre tantos personagens tortuosos,um personagem ideal,que é a mulher que enxerga.
    Só pode ser um ato falho mesmo. No fundo Saramago sabia que no meio dessa humanidade caótica existe alguém que tudo vê.
    ..Layssa

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  8. Grande discurso, Zé!
    Infelizmente você respondeu as possíveis indagações que eu teria quando puser meus olhos no meu exemplar..rsrs
    Mas, seguramente haverão outras..

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  9. Um belo texto acompanhado de uma bela reflexão, mas a obra de Saramago foi inscrita com base no Livro VII da República de Platão. O mito da caverna...
    Não acredito que Saramago fosse ateu, mesmo afirmando o ser. Ao mesmo tempo, acredito que fosse ateu quando nega a existência num Deus que aprisiona sua criação em nome de uma religiosidade. Acredito que Saramago mesmo se denominando ateu convicto, teria sido um Cristão autêntico, desvencilhado de uma religiosidade que aprisionado a humanidade, assim como em sua obra e até mesmo no mito da caverna de Platão.
    É isso... Parabéns pelo texto e um grande abraço.

    Carlos Vieira
    http://carmarvieira.blogspot.com/2009/09/carta-de-um-ateu-cristao_19.html

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  10. Aplausos reverentes, mestre Confuso.
    Sei que vc não os receberá mas dedico assim mesmo.

    Não li este do Saramago, vi o filme do Meirelles.

    Preciso concordar com o Carlos Vieira, pois tenho para mim que Saramago amargo era o alter ego do mais convicto cristão.



    abs

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  11. Zé, adorei seu texto. Não li o livro mas vi o filme.
    Adorei tb seu comentario em resposta ao anonimo... por que não complementa seu texto com ele???

    Bjs

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  12. PoiZÉ...

    Também não li esse, embora o filme tenha me deixado impressionada de ver uma única pessoa presenciar (ver) todos aqueles horrores primitivos/coletivos da alma humana.

    Diferentemente do anônimo,creio e vejo Deus agir das formas mais estranhas, afinal o Espírito sopra onde quer...

    (Eu nunca vou entender como é que alguém se pronuncia, dá seu palpite, expõe idéias e não mostra a cara, afe!)

    Parabéns pelo belo texto!

    Abs,
    R.

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